COLÔNIA ESPIRITUAL "NOSSO LAR" - (André Luiz)
Me n s a g em d e An d r é L u i z
A v i d a n ã o c e s s a . A v i d a é f o n t e e t e r n a e a m o r t e é j o g o
e s c u r o d a s i l u s õ e s .
O g r a n d e r i o t e m s e u t r a j e t o , a n t e s d o m a r i m e n s o .
C o p i a n d o - l h e a e x p r e s s ã o , a a l m a p e r c o r r e i g u a l m e n t e c a m i n h o s
v a r i a d o s e e t a p a s d i v e r s a s , t a m b é m r e c e b e a f l u e n t e s d e
c o n h e c i m e n t o s , a q u i e a l i , a v o l u m a - s e e m e x p r e s s ã o e p u r i f i c a - s e
e m q u a l i d a d e , a n t e s d e e n c o n t r a r o O c e a n o E t e r n o d a S a b e d o r i a .
C e r r a r o s o l h o s c a r n a i s c o n s t i t u i o p e r a ç ã o d e m a s i a d a m e n t e
s i m p l e s .
P e r m u t a r a r o u p a g e m f í s i c a n ã o d e c i d e o p r o b l e m a
f u n d a m e n t a l d a i l u m i n a ç ã o , c o m o a t r o c a d e v e s t i d o s n a d a t e m
q u e v e r c o m a s s o l u ç õ e s p r o f u n d a s d o d e s t i n o e d o s e r .
O h ! c a m i n h o s d a s a l m a s , m i s t e r i o s o s c a m i n h o s d o c o r a ç ã o !
É m i s t e r p e r c o r r e r - v o s , a n t e s d e t e n t a r a s u p r e m a e q u a ç ã o d a
V i d a E t e r n a ! É i n d i s p e n s á v e l v i v e r o v o s s o d r a m a , c o n h e c e r - v o s
d e t a l h e a d e t a l h e , n o l o n g o p r o c e s s o d o a p e r f e i ç o a m e n t o
e s p i r i t u a l ! . . .
S e r i a e x t r e m a m e n t e i n f a n t i l a c r e n ç a d e q u e o s i m p l e s
" b a i x a r d o p a n o " r e s o l v e s s e t r a n s c e n d e n t e s q u e s t õ e s d o I n f i n i t o .
U m a e x i s t ê n c i a é u m a t o .
U m c o r p o - u m a v e s t e .
U m s é c u l o - u m d i a .
U m s e r v i ç o - u m a e x p e r i ê n c i a .
U m t r i u n f o - u m a a q u i s i ç ã o .
U m a m o r t e - u m s o p r o r e n o v a d o r .
Q u a n t a s e x i s t ê n c i a s , q u a n t o s c o r p o s , q u a n t o s s é c u l o s ,
q u a n t o s s e r v i ç o s , q u a n t o s t r i u n f o s , q u a n t a s m o r t e s n e c e s s i t a m o s
a i n d a ?
E o l e t r a d o e m f i l o s o f i a r e l i g i o s a f a l a d e d e l i b e r a ç õ e s f i n a i s
e p o s i ç õ e s d e f i n i t i v a s !
A i ! p o r t o d a p a r t e , o s c u l t o s e m d o u t r i n a e o s a n a l f a b e t o s d o
e s p í r i t o !
É p r e c i s o m u i t o e s f o r ç o d o h o m e m p a r a i n g r e s s a r n a
a c a d e m i a d o E v a n g e l h o d o C r i s t o , i n g r e s s o q u e s e v e r i f i c a , q u a s e
s e m p r e , d e e s t r a n h a m a n e i r a - e l e s ó , n a c o m p a n h i a d o M e s t r e ,
e f e t u a n d o o c u r s o d i f í c i l , r e c e b e n d o l i ç õ e s s e m c á t e d r a s v i s í v e i s
e o u v i n d o v a s t a s d i s s e r t a ç õ e s s e m p a l a v r a s a r t i c u l a d a s .
M u i t o l o n g a , p o r t a n t o , n o s s a j o r n a d a l a b o r i o s a .
N o s s o e s f o r ç o p o b r e q u e r t r a d u z i r a p e n a s u m a i d é i a d e s s a
v e r d a d e f u n d a m e n t a l .
G r a t o , p o i s , m e u s a m i g o s !
M a n i f e s t a m o - n o s , j u n t o v ó s o u t r o s , n o a n o n i m a t o q u e
o b e d e c e à c a r i d a d e f r a t e r n a l . A e x i s t ê n c i a h u m a n a a p r e s e n t a
g r a n d e m a i o r i a d e v a s o s f r á g e i s , q u e n ã o p o d e m c o n t e r a i n d a
t o d a a v e r d a d e . A l i á s , n ã o n o s i n t e r e s s a r i a , a g o r a , s e n ã o a
e x p e r i ê n c i a p r o f u n d a , c o m o s s e u s v a l o r e s c o l e t i v o s . N ã o
a t o r m e n t a r e m o s a l g u é m c o m a i d é i a d a e t e r n i d a d e . Q u e o s v a s o s
s e f o r t a l e ç a m , e m p r i m e i r o l u g a r . F o r n e c e r e m o s , s o m e n t e ,
a l g u m a s l i g e i r a s n o t í c i a s a o e s p í r i t o s e q u i o s o d o s n o s s o s i r m ã o s
n a
s e n d a d e r e a l i z a ç ã o e s p i r i t u a l , e q u e c o m p r e e n d e m c o n o s c o q u e
" o e s p í r i t o s o p r a o n d e q u e r " .
E , a g o r a , a m i g o s , q u e m e u s a g r a d e c i m e n t o s s e c a l e m n o
p a p e l , r e c o l h e n d o - s e a o g r a n d e s i l ê n c i o d a s i m p a t i a e d a
g r a t i d ã o . A t r a ç ã o e r e c o n h e c i m e n t o , a m o r e j ú b i l o m o r a m n a
a l m a . C r e d e q u e g u a r d a r e i s e m e l h a n t e s v a l o r e s c o m i g o , a v o s s o
r e s p e i t o , n o s a n t u á r i o d o c o r a ç ã o .
Q u e o S e n h o r n o s a b e n ç o e .
AN D R É L U I Z
N AS Z O N AS I N F E R I O R E S
E u g u a r d a v a a i m p r e s s ã o d e h a v e r p e r d i d o a i d é i a d e t e m p o .
A n o ç ã o d e e s p a ç o e s v a í r a - s e - m e d e h á m u i t o .
E s t a v a c o n v i c t o d e n ã o m a i s p e r t e n c e r a o n ú m e r o d o s
e n c a r n a d o s n o m u n d o e , n o e n t a n t o , m e u s p u l m õ e s r e s p i r a v a m a
l o n g o s h a u s t o s .
D e s d e q u a n d o m e t o r n a r a j o g u e t e d e f o r ç a s i r r e s i s t í v e i s ?
I m p o s s í v e l e s c l a r e c e r .
S e n t i a - m e , n a v e r d a d e , a m a r g u r a d o d u e n d e n a s g r a d e s
e s c u r a s d o h o r r o r . C a b e l o s e r i ç a d o s , c o r a ç ã o a o s s a l t o s , m e d o
t e r r í v e l s e n h o r e a n d o - m e , m u i t a v e z g r i t e i c o m o l o u c o , i m p l o r e i
p i e d a d e e c l a m e i c o n t r a o d o l o r o s o d e s â n i m o q u e m e s u b j u g a v a o
e s p í r i t o ; m a s , q u a n d o o s i l ê n c i o i m p l a c á v e l n ã o m e a b s o r v i a a
v o z e s t e n t ó r i c a , l a m e n t o s m a i s c o m o v e d o r e s , q u e o s m e u s ,
r e s p o n d i a m - m e a o s c l a m o r e s . O u t r a s v e z e s g a r g a l h a d a s s i n i s t r a s
r a s g a v a m a q u i e t u d e a m b i e n t e . A l g u m c o m p a n h e i r o d e s c o n h e c i d o
e s t a r i a , a m e u v e r , p r i s i o n e i r o d a l o u c u r a . F o r m a s d i a b ó l i c a s ,
r o s t o s a l v a r e s , e x p r e s s õ e s a n i m a l e s c a s s u r g i a m , d e q u a n d o e m
q u a n d o , a g r a v a n d o - m e o a s s o m b r o . A p a i s a g e m , q u a n d o n ã o
t o t a l m e n t e e s c u r a , p a r e c i a b a n h a d a d e l u z a l v a c e n t a , c o m o q u e
a m o r t a l h a d a
e m n e b l i n a e s p e s s a , q u e o s r a i o s d e S o l a q u e c e s s e m d e m u i t o
l o n g e .
E a e s t r a n h a v i a g e m p r o s s e g u i a . . . C o m q u e f i m ? Q u e m o
p o d e r i a d i z e r ? Ap e n a s s a b i a q u e f u g i a s e m p r e . . . O m e d o m e
i m p e l i a d e r o l d ã o . O n d e o l a r , a e s p o s a , o s f i l h o s ? P e r d e r a t o d a a
n o ç ã o d e r u m o . O r e c e i o d o i g n o t o e o p a v o r d a t r e v a a b s o r v i a m -
m e t o d a s a s f a c u l d a d e s d e r a c i o c í n i o , l o g o q u e m e d e s p r e n d e r a
d o s ú l t i m o s l a ç o s f í s i c o s , e m p l e n o s e p u l c r o !
A t o r m e n t a v a - m e a c o n s c i ê n c i a : p r e f e r i r i a a a u s ê n c i a t o t a l d a
r a z ã o , o n ã o - s e r .
D e i n í c i o , a s l á g r i m a s l a v a v a m - m e i n c e s s a n t e m e n t e o r o s t o
e a p e n a s , e m m i n u t o s r a r o s , f e l i c i t a v a - m e a b ê n ç ã o d o s o n o .
I n t e r r o m p i a - s e , p o r é m , b r u s c a m e n t e , a s e n s a ç ã o d e a l í v i o . S e r e s
m o n s t r u o s o s a c o r d a v a m - m e , i r ô n i c o s ; e r a i m p r e s c i n d í v e l f u g i r
d e l e s .
R e c o n h e c i a , a g o r a , a e s f e r a d i f e r e n t e a e r g u e r - s e d a p o a l h a
d o m u n d o e , t o d a v i a , e r a t a r d e . P e n s a m e n t o s a n g u s t i o s o s
a t r i t a v a m - m e o c é r e b r o . M a l d e l i n e a v a p r o j e t o s d e s o l u ç ã o ,
i n c i d e n t e s n u m e r o s o s i m p e l i a m - m e a c o n s i d e r a ç õ e s
e s t o n t e a n t e s . E m m o m e n t o a l g u m , o p r o b l e m a r e l i g i o s o s u r g i u
t ã o p r o f u n d o a m e u s o l h o s . O s p r i n c í p i o s p u r a m e n t e f i l o s ó f i c o s ,
p o l í t i c o s e c i e n t í f i c o s , f i g u r a v a m - s e - m e a g o r a e x t r e m a m e n t e
s e c u n d á r i o s p a r a a v i d a h u m a n a . S i g n i f i c a v a m , a m e u v e r , v a l i o s o
p a t r i m ô n i o n o s p l a n o s d a T e r r a , m a s u r g i a r e c o n h e c e r q u e a
h u m a n i d a d e n ã o s e c o n s t i t u i d e g e r a ç õ e s t r a n s i t ó r i a s e s i m d e
E s p í r i t o s e t e r n o s , a c a m i n h o d e g l o r i o s a d e s t i n a ç ã o . V e r i f i c a v a
q u e a l g u m a c o i s a p e r m a n e c e a c i m a d e t o d a c o g i t a ç ã o m e r a m e n t e
i n t e l e c t u a l . E s s e a l g o é a f é , m a n i f e s t a ç ã o d i v i n a a o h o m e m .
S e m e l h a n t e a n á l i s e s u r g i a , c o n t u d o , t a r d i a m e n t e . D e f a t o ,
c o n h e c i a a s l e t r a s d o V e l h o T e s t a m e n t o e m u i t a v e z f o l h e a r a o
E v a n g e l h o ; e n t r e t a n t o , e r a f o r ç o s o r e c o n h e c e r q u e n u n c a
p r o c u r a r a a s l e t r a s s a g r a d a s c o m a l u z d o c o r a ç ã o . I d e n t i f i c a v a-as
a t r a v é s d a c r í t i c a d e e s c r i t o r e s m e n o s a f e i t o s a o s e n t i m e n t o e à
c o n s c i ê n c i a , o u e m p l e n o d e s a c o r d o c o m a s v e r d a d e s e s s e n c i a i s .
N o u t r a s o c a s i õ e s , i n t e r p r e t a v a - a s c o m o s a c e r d ó c i o o r g a n i z a d o ,
s e m s a i r j a m a i s d o c í r c u l o d e c o n t r a d i ç õ e s , o n d e e s t a c i o n a r a
v o l u n t a r i a m e n t e .
E m v e r d a d e , n ã o f o r a u m c r i m i n o s o , n o m e u p r ó p r i o
c o n c e i t o . A f i l o s o f i a d o i m e d i a t i s m o , p o r é m , a b s o r v e r a - m e . A
e x i s t ê n c i a t e r r e s t r e , q u e a m o r t e t r a n s f o r m a r a , n ã o f o r a
a s s i n a l a d a d e l a n c e s d i f e r e n t e s d a c r a v e i r a c o m u m .
F i l h o d e p a i s t a l v e z e x c e s s i v a m e n t e g e n e r o s o s , c o n q u i s t a r a
m e u s t í t u l o s u n i v e r s i t á r i o s s e m m a i o r s a c r i f í c i o , c o m p a r t i l h a r a o s
v í c i o s d a m o c i d a d e d o m e u t e m p o , o r g a n i z a r a o l a r , c o n s e g u i r a
f i l h o s , p e r s e g u i r a s i t u a ç õ e s e s t á v e i s q u e g a r a n t i s s e m a
t r a n q ü i l i d a d e e c o n ô m i c a d o m e u g r u p o f a m i l i a r , m a s , e x a m i n a n d o
a t e n t a m e n t e a m i m m e s m o , a l g o m e f a z i a e x p e r i m e n t a r a n o ç ã o d e
t e m p o p e r d i d o , c o m a s i l e n c i o s a a c u s a ç ã o d a c o n s c i ê n c i a .
H a b i t a r a a T e r r a , g o z a r a - l h e o s b e n s , c o l h e r a a s b ê n ç ã o s d a v i d a ,
m a s n ã o l h e r e t r i b u í r a c e i t i l d o d é b i t o e n o r m e . T i v e r a p a i s , c u j a
g e n e r o s i d a d e e s a c r i f í c i o s p o r m i m n u n c a a v a l i e i ; e s p o s a e f i l h o s
q u e p r e n d e r a , f e r o z m e n t e , n a s t e i a s r i j a s d o e g o í s m o d e s t r u i d o r .
P o s s u í r a u m l a r q u e f e c h e i a t o d o s o s q u e p a l m i l h a v a m o d e s e r t o
d a a n g ú s t i a . D e l i c i a r a - m e c o m o s j ú b i l o s d a f a m í l i a , e s q u e c i d o d e
e s t e n d e r e s s a b e n ç ã o d i v i n a à i m e n s a f a m í l i a h u m a n a , s u r d o a
c o m e z i n h o s d e v e r e s d e f r a t e r n i d a d e .
E n f i m , c o m o a f l o r d e e s t u f a , n ã o s u p o r t a v a a g o r a o c l i m a
d a s r e a l i d a d e s e t e r n a s . N ã o d e s e n v o l v e r a o s g e r m e s d i v i n o s q u e
o S e n h o r d a V i d a c o l o c a r a e m m i n h a l m a . S u f o c a r a - o s ,
c r i m i n o s a m e n t e , n o d e s e j o i n c o n t i d o d e b e m e s t a r . N ã o a d e s t r a r a
ó r g ã o s p a r a a v i d a n o v a . E r a j u s t o , p o i s , q u e a í d e s p e r t a s s e à
m a n e i r a d e a l e i j a d o q u e , r e s t i t u í d o a o r i o i n f i n i t o d a e t e r n i d a d e ,
n ã o p u d e s s e
acompanhar senão compulsoriamente a carreira incessante das águas; ou
como mendigo infeliz, que, exausto em pleno deserto, perambula à mercê de
impetuosos tufões.
O h ! a m i g o s d a T e r r a ! q u a n t o s d e v ó s p o d e r e i s e v i t a r o
c a m i n h o d a a m a r g u r a c o m o p r e p a r o d o s c a m p o s i n t e r i o r e s d o
c o r a ç ã o ? Ac e n d e i v o s s a s l u z e s a n t e s d e a t r a v e s s a r a g r a n d e
s o m b r a . B u s c a i a v e r d a d e , a n t e s q u e a v e r d a d e v o s s u r p r e e n d a .
S u a i a g o r a p a r a n ã o c h o r a r d e s d e p o i s .
CLARÊNCIO
"Suicida! Suicida! Criminoso! Infame!" - gritos assim, cercavam-me de
todos os lados. Onde os sicários de coração empedernido? Por vezes,
enxergava-os de relance, escorregadios na treva espessa e, quando meu
desespero atingia o auge, atacava-os, mobilizando extremas energias. Em
vão, porém, esmurrava o ar nos paroxismos da cólera. Gargalhadas
sarcásticas feriam-me os ouvidos, enquanto os vultos negros desapareciam
na sombra.
Para quem apelar? Torturava-me a fome, a sede me escaldava.
Comezinhos fenômenos da experiência material patenteavam-se-me aos
olhos. Crescera-me a barba, a roupa começava a romper-se com os esforços
da resistência, na região desconhecida. A circunstância mais dolorosa, no
entanto, não é o terrível abandono a que me sentia votado, mas o assédio
incessante de forças perversas que me assomavam nos caminhos ermos e
obscuros. Irritavam-me, aniquilavam-me a possibilidade de concatenar
idéias. Desejava ponderar maduramente a situação, esquadrinhar razões e
estabelecer novas diretrizes ao pensamento, mas aquelas vozes, a momentos misturados de acusações nominais, desnorteavam-me
irremediavelmente.
- Que buscas, infeliz! Aonde vais, suicida?
Tais objurgatórias, incessantemente repetidas, perturbavam-me o
coração. Infeliz, sim; mas, suicida? - nunca! Essas increpações, a meu ver,
não eram procedentes. Eu havia deixado o corpo físico a contragosto.
Recordava meu porfiado duelo com a morte. Ainda julgava ouvir os últimos
pareceres médicos, enunciados na Casa de Saúde; lembrava a assistência
desvelada que tivera, os curativos dolorosos que experimentara nos dias
longos que se seguiram à delicada operação dos intestinos. Sentia, no curso
dessas reminiscências, o contacto do termômetro, o pique desagradável da
agulha de injeções e, por fim, a última cena que precedera o grande sono:
minha esposa ainda jovem e os três filhos contemplando-me, no terror da
eterna separação. Depois... o despertar na paisagem úmida e escura e a
grande caminhada que parecia sem-fim.
Por que a pecha de suicídio, quando fora compelido a abandonar a
casa, a família e o doce convívio dos meus? O homem mais forte conhecerá
limites à resistência emocional. Firme e resoluto a princípio, comecei por
entregar-me a longos períodos de desânimo, e, longe de prosseguir na
fortaleza moral, por ignorar o próprio fim, senti que as lágrimas longamente
represadas visitavam-me com mais freqüência, extravasando do coração.
A quem recorrer? Por maior que fosse a cultura intelectual trazida do
mundo, não poderia alterar, agora, a realidade da vida. Meus conhecimentos,
ante o infinito, semelhavam-se a pequenas bolhas de sabão levadas ao
vento impetuoso que transforma as paisagens. Eu era alguma coisa que o
tufão da verdade carreava para muito longe. Entretanto, a situação não
modificava a outra realidade do meu ser essencial. Perguntando a mim mesmo se não enlouquecera, encontrava a consciência vigilante,
esclarecendo-me que continuava a ser eu mesmo, com o sentimento e a
cultura colhidos na experiência material. Persistiam as necessidades
fisiológicas, sem modificação. Castigava-me a fome todas as fibras, e, nada
obstante, o abatimento progressivo não me fazia cair definitivamente em
absoluta exaustão. De quando em quando, deparavam-se-me verduras que
me pareciam agrestes, em torno de humildes filetes dágua a que me atirava
sequioso. Devorava as folhas desconhecidas, colava os lábios à nascente
turva, enquanto mo permitiam as forças irresistíveis, a impelirem-me para a
frente. Muita vez suguei a lama da estrada, recordei o antigo pão de cada dia,
vertendo copioso pranto. Não raro, era imprescindível ocultar-me das
enormes manadas de seres animalescos, que passavam em bando, quais
feras insaciáveis. Eram quadros de estarrecer! acentuava-se o desalento. Foi
quando comecei a recordar que deveria existir um Autor da Vida, fosse onde
fosse. Essa idéia confortou-me. Eu, que detestara as religiões no mundo,
experimentava agora a necessidade de conforto místico. Médico
extremamente arraigado ao negativismo da minha geração, impunha-se-me
atitude renovadora. Tornava-se imprescindível confessar a falência do amorpróprio, a que me consagrara orgulhoso.
E, quando as energias me faltaram de todo, quando me senti
absolutamente colado ao lodo da Terra, sem forças para reerguer-me, pedi
ao Supremo Autor da Natureza me estendesse mãos paternais, em tão
amargurosa emergência.
Quanto tempo durou a rogativa? Quantas horas consagrei à súplica,
de mãos-postas, imitando a criança aflita? Apenas sei que a chuva das
lágrimas me lavou o rosto; que todos os meus sentimentos se concentraram
na prece dolorosa. Estaria, então, completamente esquecido? Não era, igualmente, filho de Deus, embora não cogitasse de
conhecer-lhe a atividade sublime quando engolfado nas vaidades da
experiência humana? Por que não me perdoaria o Eterno Pai, quando
providenciava ninho às aves inconscientes e protegia, bondoso, a flor tenra
dos campos agrestes?
Ah! é preciso haver sofrido muito, para entender todas as misteriosas
belezas da oração; é necessário haver conhecido o remorso, a humilhação,
a extrema desventura, para tomar com eficácia o sublime elixir de
esperança. Foi nesse instante que as neblinas espessas se dissiparam e
alguém surgiu, emissário dos Céus. Um velhinho simpático me sorriu
paternalmente. Inclinou--se, fixou nos meus os grandes olhos lúcidos, e
falou:
- Coragem, meu filho! O Senhor não te desampara.
Amargurado pranto banhava-me a alma toda. Emocionado, quis
traduzir meu júbilo, comentar a consolação que me chegava, mas, reunindo
todas as forças que me restavam, pude apenas inquirir:
- Quem sois, generoso emissário de Deus?
O inesperado benfeitor sorriu bondoso e respondeu:
- Chama-me Clarêncio, sou apenas teu irmão.
E, percebendo o meu esgotamento, acrescentou:
- Agora, permanece calmo e silencioso. É preciso descansar para
reaver energias.
Em seguida, chamou dois companheiros que guardavam atitude de
servos desvelados e ordenou:
- Prestemos ao nosso amigo os socorros de emergência.
Alvo lençol foi estendido ali mesmo, à guisa de maca improvisada,
aprestando-se ambos os cooperadores a transportarem-me, generosamente.
Quando me alçavam, cuidadosos, Clarêncio meditou um instante e
esclareceu, como quem recorda inadiável obrigação:
- Vamos sem demora. Preciso atingir "Nosso Lar" com a presteza
possível.
A ORAÇÃO COLETIVA
Embora transportado à maneira de ferido comum, lobriguei o quadro
confortante que se desdobrava à minha vista.
Clarêncio, que se apoiava num cajado de substância luminosa, detevese à frente de grande porta encravada em altos muros, cobertos de
trepadeiras floridas e graciosas. Tateando um ponto da muralha, fez-se
longa abertura, através da qual penetramos, silenciosos.
Branda claridade inundava ali todas as coisas. Ao longe, gracioso
foco de luz dava a idéia de um pôr do sol em tardes primaveris. A medida
que avançávamos, conseguia identificar preciosas construções, situadas em
extensos jardins.
Ao sinal de Clarêncio, os condutores depuseram, devagarinho, a maca
improvisada. A meus olhos surgiu, então, a porta acolhedora de alvo
edifício, à feição de grande hospital terreno. Dois jovens, envergando
túnicas de níveo linho, acorreram pressurosos ao chamado de meu
benfeitor, e quando me acomodavam num leito de emergência, para me
conduzirem cuidadosamente ao interior, ouvi o generoso ancião
recomendar, carinhoso:
- Guardem nosso tutelado no pavilhão da direita. Esperam agora por
mim. Amanhã cedo voltarei a vê-lo.
Enderecei-lhe um olhar de gratidão, ao mesmo tempo que era
conduzido a confortável aposento de amplas proporções, ricamente
mobilado, onde me ofereceram leito acolhedor.
Envolvendo os dois enfermeiros na vibração do meu reconhecimento,
esforcei-me por lhes dirigir a palavra, conseguindo dizer por fim:
- Amigos, por quem sois, explicai-me em que novo mundo me
encontro... De que estrela me vem, agora, esta luz confortadora e brilhante?
Um deles afagou-me a fronte, como se fora conhecido pessoal de
longo tempo e acentuou:
- Estamos nas esferas espirituais vizinhas da Terra, e o Sol que nos
ilumina, neste momento, é o mesmo que nos vivificava o corpo físico. Aqui,
entretanto, nossa percepção visual é muito mais rica. A estrela que o Senhor
acendeu para os nossos trabalhos terrestres é mais preciosa e bela do que a
supomos quando no círculo carnal. Nosso Sol é a divina matriz da vida, e a
claridade que irradia provém do Autor da Criação.
Meu ego, como que absorvido em onda de infinito respeito, fixou a luz
branda que invadia o quarto, através das janelas, e perdi-me no curso de
profundas cogitações. Recordei, então, que nunca fixara o Sol, nos dias
terrestres, meditando na imensurável bondade dAquele que no-lo concede
para o caminho eterno da vida. Semelhava-me assim ao cego venturoso, que
abre os olhos para a Natureza sublime, depois de longos séculos de
escuridão.
A essa altura, serviram-me caldo reconfortante, seguido de água muito
fresca, que me pareceu portadora de fluidos divinos. Aquela reduzida porção
de liquido reanimava-me inesperadamente. Não saberia dizer que espécie de sopa era aquela; se alimentação sedativa, se remédio
salutar. Novas energias amparavam-me a alma, profundas comoções
vibravam-me no espírito.
Minha maior emoção, todavia, reservava-se para instantes depois.
Mal não saíra da consoladora surpresa, divina melodia penetrou
quarto a dentro, parecendo suave colmeia de sons a caminho das esferas
superiores. Aquelas notas de maravilhosa harmonia atravessavam-me o
coração. Ante meu olhar indagador, o enfermeiro, que permanecia ao lado,
esclareceu, bondoso:
É chegado o crepúsculo em "Nosso Lar". Em todos os núcleos desta
colônia de trabalho, consagrada ao Cristo, há ligação direta com as preces
da Governadoria.
E enquanto a música embalsamava o ambiente, despediu-se,
atencioso:
- Agora, fique em paz. Voltarei logo após a oração.
Empolgou-me ansiedade súbita.
- Não poderei acompanhar-vos? - perguntei, suplicante.
- Está ainda fraco - esclareceu, gentil -, todavia, caso sinta-se
disposto...
Aquela melodia renovava-me as energias profundas. Levantei-me
vencendo dificuldades e agarrei-me ao braço fraternal que se me estendia.
Seguindo vacilante, cheguei a enorme salão, onde numerosa assembléia
meditava em silêncio, profundamente recolhida. Da abóbada cheia de
claridade brilhante, pendiam delicadas e flóreas guirlandas, que vinham do
teto à base, formando radiosos símbolos de Espiritualidade Superior.
Ninguém parecia dar conta da minha presença, ao passo que mal
dissimulava eu a surpresa inexcedível. Todos os circunstantes, atentos,
pareciam aguardar alguma coisa. Contendo a custo numerosas indagações
que me esfervilhavam na mente, notei que ao fundo, em tela gigantesca,
desenhava-se prodigioso quadro de luz quase feérica. Obedecendo a
processos adiantados de televisão, surgiu o cenário de templo maravilhoso.
Sentado em lugar de destaque, um ancião coroado de luz fixava o Alto, em
atitude de prece, envergando alva túnica de irradiações resplandecentes. Em
plano inferior, setenta e duas figuras pareciam acompanhá-lo em respeitoso
silêncio. Altamente surpreendido, reparei Clarêncio participando da
assembléia, entre os que cercavam o velhinho refulgente.
Apertei o braço do enfermeiro amigo, e, compreendendo ele que
minhas perguntas não se fariam esperar, esclareceu em voz baixa, que mais
se assemelhava a leve sopro:
- Conserve-se tranqüilo. Todas as residências e instituições de "Nosso
Lar" estão orando com o Governador, através da audição e visão a distância.
Louvemos o Coração Invisível do Céu.
Mal terminara a explicação, as setenta e duas figuras começaram a
cantar harmonioso hino, repleto de indefinível beleza. A fisionomia de
Clarêncio, no círculo dos veneráveis companheiros, figurou-se-me tocada de
mais intensa luz. O cântico celeste constituía-se de notas angelicais, de
sublimado reconhecimento. Pairavam no recinto misteriosas vibrações de
paz e de alegria e, quando as notas argentinas fizeram delicioso staccato,
desenhou-se ao longe, em plano elevado, um coração maravilhosamente
azul (1), com estrias douradas. Cariciosa
__________
(1) - Imagem simbólica formada pelas vibrações mentais dos habitantes da colônia. -
(Nota do Autor espiritual.)
música, em seguida, respondia aos louvores, procedente talvez de esferas
distantes. Foi aí que abundante chuva de flores azuis se derramou sobre
nós; mas, se fixávamos os miosótis celestiais, não conseguíamos detê-los
nas mãos. As corolas minúsculas desfaziam-se de leve, ao tocar-nos a
fronte, experimentando eu, por minha vez, singular renovação de energias
ao contacto das pétalas fluídicas que me balsamizavam o coração.
Terminada a sublime oração, regressei ao aposento de enfermo,
amparado pelo amigo que me atendia de perto. Entretanto, não era mais o
doente grave de horas antes. A primeira prece coletiva, em "Nosso Lar",
operara em mim completa transformação. Conforto inesperado envolvia-me
a alma. Pela primeira vez, depois de anos consecutivos de sofrimento, o
pobre coração, saudoso e atormentado, à maneira de cálice muito tempo
vazio, enchera-se de novo das gotas generosas do licor da esperança.
O MÉDICO ESPIRITUAL
No dia imediato, após reparador e profundo repouso, experimentei a
bênção radiosa do Sol amigo, qual suave mensagem ao coração. Claridade
reconfortante atravessava ampla janela, inundando o recinto de cariciosa
luz. Sentia-me outro. Energias novas tocavam-me o íntimo. Tinha a
impressão de sorver a alegria da vida, a longos haustos. Na alma, apenas
um ponto sombrio - a saudade do lar, o apego à família que ficara distante.
Numerosas interrogações pairavam-me na mente, mas tão grande era a
sensação de alívio que eu sossegava o espírito, longe de qualquer
interpelação.
Quis levantar-me, gozar o espetáculo da Natureza cheia de brisas e de
luz, mas não o consegui e concluí que, sem a cooperação magnética do
enfermeiro, tornava-se-me impossível deixar o leito.
Não voltara a mim das surpresas consecutivas, quando se abriu a
porta e vi entrar Clarêncio acompanhado por simpático desconhecido.
Cumprimentaram-me, atenciosos, desejando-me paz. Meu benfeitor da
véspera indagou do meu estado geral. Acorreu o enfermeiro, prestando
informações.
Sorridente, o velhinho amigo apresentou-me o companheiro. Tratavase, disse, do irmão Henrique de Luna, do Serviço de Assistência Médica da
colônia espiritual. Trajado de branco, traços fisionômicos irradiando enorme
simpatia, Henrique auscultou-me demoradamente, sorriu e explicou:
- É de lamentar que tenha vindo pelo suicídio.
Enquanto Clarêncio permanecia sereno, senti que singular assomo de
revolta me borbulhava no íntimo.
Suicídio? Recordei as acusações dos seres perversos das sombras.
Não obstante o cabedal de gratidão que começava a acumular, não calei a
incriminação.
- Creio haja engano - asseverei, melindrado -, meu regresso do mundo
não teve essa causa. Lutei mais de quarenta dias, na Casa de Saúde,
tentando vencer a morte. Sofri duas operações graves, devido a oclusão
intestinal...
- Sim - esclareceu o médico, demonstrando a mesma serenidade
superior -, mas a oclusão radicava-se em causas profundas. Talvez o amigo
não tenha ponderado bastante. O organismo espiritual apresenta em si
mesmo a história completa das ações praticadas no mundo.
E inclinando-se, atencioso, indicava determinados pontos do meu
corpo:
- Vejamos a zona intestinal - exclamou. - A oclusão derivava de
elementos cancerosos, e estes, por sua vez, de algumas leviandades do meu
estimado irmão, no campo da sífilis. A moléstia talvez não assumisse
características tão graves, se o seu procedimento mental no planeta
estivesse enquadrado nos princípios da fraternidade e da temperança.
Entretanto, seu modo especial de conviver, muita vez exasperado e sombrio,
captava destruidoras vibrações naqueles que o ouviam. Nunca imaginou que a cólera fosse manancial de forças negativas para nós
mesmos? A ausência de autodomínio, a inadvertência no trato com os
semelhantes, aos quais muitas vezes ofendeu sem refletir, conduziam-no
freqüentemente à esfera dos seres doentes e inferiores. Tal circunstância
agravou, de muito, o seu estado físico.
Depois de longa pausa, em que me examinava atentamente,
continuou:
- Já observou, meu amigo, que seu fígado foi maltratado pela sua
própria ação; que os rins foram esquecidos, com terrível menosprezo às
dádivas sagradas?
Singular desapontamento invadira-me o coração. Parecendo
desconhecer a angústia que me oprimia, continuava o médico,
esclarecendo:
- Os órgãos do corpo somático possuem incalculáveis reservas,
segundo os desígnios do Senhor. O meu amigo, no entanto, iludiu
excelentes oportunidades, esperdiçado patrimônios preciosos da
experiência física. A longa tarefa, que lhe foi confiada pelos Maiores da
Espiritualidade Superior, foi reduzida a meras tentativas de trabalho que não
se consumou. Todo o aparelho gástrico foi destruído à custa de excessos de
alimentação e bebidas alcoólicas, aparentemente sem importância. Devoroulhe a sífilis energias essenciais. Como vê, o suicídio é incontestável.
Meditei nos problemas dos caminhos humanos, refletindo nas
oportunidades perdidas. Na vida humana, conseguia ajustar numerosas
máscaras ao rosto, talhando-as conforme as situações. Aliás, não poderia
supor, noutro tempo, que me seriam pedidas contas de episódios simples,
que costumava considerar como fatos sem maior significação. Conceituara,
até ali, os erros humanos, segundo os preceitos da criminologia. Todo
acontecimento insignificante, estranho aos códigos, entraria na
relação de fenômenos naturais. Deparava-se-me, porém, agora, outro
sistema de verificação das faltas cometidas. Não me defrontavam tribunais
de tortura, nem me surpreendiam abismos infernais; contudo, benfeitores
sorridentes comentavam-me as fraquezas como quem cuida de uma criança
desorientada, longe das vistas paternas. Aquele interesse espontâneo, no
entanto, feria-me a vaidade de homem. Talvez que, visitado por figuras
diabólicas a me torturarem, de tridente nas mãos, encontrasse forças para
tornar a derrota menos amarga. Todavia, a bondade exuberante de
Clarêncio, a inflexão de ternura do médico, a calma fraternal do enfermeiro,
penetravam-me fundo o espírito. Não me dilacerava o desejo de reação;
doía-me a vergonha. E chorei. Rosto entre as mãos, qual menino contrariado
e infeliz, pus-me a soluçar com a dor que me parecia irremediável. Não havia
como discordar. Henrique de Luna falava com sobejas razões. Por fim,
abafando os impulsos vaidosos, reconheci a extensão de minhas
leviandades de outros tempos. A falsa noção da dignidade pessoal cedia
terreno à justiça. Perante minha visão espiritual só existia, agora, uma
realidade torturante: era verdadeiramente um suicida, perdera o ensejo
precioso da experiência humana, não passava de náufrago a quem se
recolhia por caridade.
Foi então que o generoso Clarêncio, sentando-se no leito, a meu lado,
afagou-me paternalmente os cabelos e falou comovido:
- Oh! meu filho, não te lastimes tanto. Busquei-te atendendo à
intercessão dos que te amam, dos planos mais altos. Tuas lágrimas atingem
seus corações. Não desejas ser grato, mantendo-te tranqüilo no exame das
próprias faltas? Na verdade, tua posição é a do suicida inconsciente; mas é
necessário reconhecer que centenas de criaturas se ausentam diariamente
da Terra, nas mesmas condições. Acalma-te, pois. Aproveita os tesouros do arrependimento,
guarda a bênção do remorso, embora tardio, sem esquecer que a aflição não
resolve problemas. Confia no Senhor e em nossa dedicação fraternal.
Sossega a alma perturbada, porque muitos de nós outros já perambulamos
igualmente nos teus caminhos.
Ante a generosidade que transbordava dessas palavras, mergulhei a
cabeça em seu colo paternal e chorei longamente.
RECEBENDO ASSISTÊNCIA
- É você o tutelado de Clarêncio?
A pergunta vinha de um jovem de singular e doce expressão.
Grande bolsa pendente da mão, como quem conduzia apetrechos de
assistência, endereçava-me ele sorriso acolhedor. Ao meu sinal afirmativo,
mostrou-se à vontade e, maneiras fraternas, acentuou:
- Sou Lísias, seu irmão. Meu diretor, o assistente Henrique de Luna,
designou-me para servi-lo, enquanto precisar tratamento.
- É enfermeiro? - indaguei.
- Sou visitador dos serviços de saúde. Nessa qualidade, não só
coopero na enfermagem, como também assinalo necessidades de socorro,
ou providências que se refiram a enfermos recém-chegados.
Notando-me a surpresa, explicou:
- Nas minhas condições há numerosos servidores em "Nosso Lar". O
amigo ingressou agora na colônia e, naturalmente, ignora a amplitude dos
nossos trabalhos. Para fazer uma idéia, basta lembrar que apenas aqui,
na seção em que se encontra, existem mais de mil doentes espirituais, e
note que este é um dos menores edifícios do nosso parque hospitalar.
- Tudo isso é maravilhoso! - exclamei.
Adivinhando que minhas observações iam descambar para o elogio
espontâneo, Lísias levantou-se da poltrona a que se recolhera e começou a
auscultar-me, atento, impedindo-me o agradecimento verbal.
- A zona dos seus intestinos apresenta lesões sérias com vestígios
muito exatos do câncer; a região do fígado revela dilacerações; a dos rins
demonstra característicos de esgotamento prematuro.
Sorrindo, bondoso, acrescentou:
- Sabe o irmão o que significa isso?
- Sim - repliquei , o médico esclareceu ontem, explicando que devo
esses distúrbios a mim mesmo...
Reconhecendo o acanhamento da confissão reticenciosa, apressou-se
a consolar:
- Na turma de oitenta enfermos a que devo assistência diária,
cinqüenta e sete se encontram nas suas condições. E talvez ignore que
existem, por aqui, os mutilados. Já pensou nisso? Sabe que o homem
imprevidente, que gastou os olhos no mal, aqui comparece de órbitas
vazias? Que o malfeitor, interessado em utilizar
o dom da locomoção fácil nos atos criminosos, experimenta a desolação da
paralisia, quando não é recolhido absolutamente sem pernas? Que os
pobres obsidiados nas aberrações sexuais costumam chegar em extrema
loucura?
Identificando-me a perplexidade natural, prosseguiu:
- "Nosso Lar" não é estância de espíritos propriamente vitoriosos, se
conferirmos ao termo sua razoável acepção. Somos felizes, porque temos
trabalho; e a alegria habita cada recanto da colônia, porque o Senhor não nos retirou o pão
abençoado do serviço.
Aproveitando a pausa mais longa, exclamei sensibilizado:
- Continue, meu amigo, esclareça-me. Sinto-me aliviado e tranqüilo.
Não será esta região um departamento celestial dos eleitos?
Lísias sorriu e explicou:
- Recordemos o antigo ensinamento que se refere a muitos chamados
e poucos escolhidos na Terra.
E vagueando o olhar no horizonte longínquo, como a fixar
experiências de si mesmo no painel das recordações mais íntimas,
acentuou:
- As religiões, no planeta, convocam as criaturas ao banquete
celestial. Em sã consciência, ninguém que se tenha aproximado, um dia, da
noção de Deus, pode alegar ignorância nesse particular. Incontável é o
número dos chamados, meu amigo; mas, onde os que atendem ao
chamado? Com raras exceções, a massa humana prefere aceder a outro
gênero de convites. Gasta-se a possibilidade nos desvios do bem, agrava-se
o capricho de cada um, elimina-se o corpo físico a golpes de irreflexão.
Resultado: milhares de criaturas retiram-se diariamente da esfera da carne
em doloroso estado de incompreensão. Multidões sem conto erram em
todas as direções nos círculos imediatos à crosta planetária, constituídas de
loucos, doentes e ignorantes.
Notando-me a admiração, interrogou:
- Acreditaria, porventura, que a morte do corpo nos conduziria a
planos de milagres? Somos compelidos a trabalho áspero, a serviços
pesados e não basta isso. Se temos débitos no planeta, por mais alto que
ascendamos, é imprescindível voltar, para retificar, lavando o rosto no suor
do mundo, desatando algemas de ódio e
substituindo-as por laços sagrados de amor. Não seria justo impor a outrem
a tarefa de mondar o campo que semeamos de espinhos, com as próprias
mãos.
Abanando a cabeça, acrescentava:
- Caso dos muitos chamados, meu caro. O Senhor não esquece
homem algum; todavia, raríssimos homens o recordam.
Acabrunhado com a lembrança dos próprios erros, diante de tão
grandes noções de responsabilidade individual, objetei:
- Como fui perverso!
Contudo, antes que me alongasse noutras exclamações, o visitador
colocou a destra carinhosa em meus lábios, murmurando:
- Cale-se! meditemos no trabalho a fazer. No arrependimento
verdadeiro é preciso saber falar, para construir de novo.
Em seguida, aplicou-me passes magnéticos, atenciosamente. Fazendo
os curativos na zona intestinal, esclareceu:
- Não observa o tratamento especializado da zona cancerosa? Pois
note bem: toda medicina honesta é serviço de amor, atividade de socorro
justo; mas o trabalho de cura é peculiar a cada espírito. Meu irmão será
tratado carinhosamente, sentir-se-á forte como nos tempos mais belos da
sua juventude terrena, trabalhará muito e, creio, será um dos melhores
colaboradores em "Nosso Lar"; entretanto, a causa dos seus males
persistirá em si mesmo, até que se desfaça dos germes de perversão da
saúde divina, que agregou ao seu corpo sutil pelo descuido moral e pelo
desejo de gozar mais que os outros. A carne terrestre, onde abusamos, é
também o campo bendito onde conseguimos realizar frutuosos labores de cura radical, quando permanecemos atentos ao dever justo.
Meditei os conceitos, ponderei a bondade divina e, na exaltação da
sensibilidade, chorei copiosamente.
Lísias, contudo, terminou o tratamento do dia, com serenidade, e
falou:
- Quando as lágrimas não se originam da revolta, sempre constituem
remédio depurador. Chore, meu amigo. Desabafe o coração. E abençoemos
aquelas beneméritas organizações microscópicas que são as células de
carne na Terra. Tão humildes e tão preciosas, tão detestadas e tão sublimes
pelo espírito de serviço. Sem elas, que nos oferecem templo à retificação,
quantos milênios gastaríamos na ignorância?
Assim falando, afagou-me carinhosamente a fronte abatida e
despediu-se com um ósculo de amor.
PRECIOSO AVISO
No dia imediato, após a oração do crepúsculo, Clarêncio me procurou
em companhia do atencioso visitador.
Fisionomia a irradiar generosidade, perguntou, abraçando-me:
- Como vai? Melhorzinho?
Esbocei o gesto do enfermo que se vê acariciado na Terra,
amolecendo as fibras emotivas. No mundo, às vezes, o carinho fraterno é
mal interpretado. Obedecendo ao velho vicio, comecei a explicar-me,
enquanto os dois benfeitores se sentavam comodamente a meu lado:
- Não posso negar que esteja melhor; entretanto, sofro intensamente.
Muitas dores na zona intestinal, estranhas sensações de angústia no
coração. Nunca supus fosse capaz de tamanha resistência, meu amigo. Ah!
como tem sido pesada a minha cruz!... Agora que posso concatenar idéias,
creio que a dor me aniquilou todas as forças disponíveis...
Clarêncio ouvia, atencioso, demonstrando grande interesse pelas
minhas lamentações, sem o menor gesto
que denunciasse o propósito de intervir no assunto. Encorajado com essa
atitude, continuei:
- Além do mais, meus sofrimentos morais são enormes e
inexprimíveis. Amainada a tormenta exterior com os socorros recebidos,
volto agora às tempestades íntimas. Que terá sido feito de minha esposa, de
meus filhos? Teria o meu primogênito conseguido progredir, segundo meu
velho ideal? E as filhinhas? Minha desventurada Zélia muitas vezes afirmou
que morreria de saudades, se um dia eu lhe faltasse. Admirável esposa!
Ainda lhe sinto as lágrimas dos momentos derradeiros. Não sei desde
quando vivo o pesadelo da distância... Continuadas dilacerações roubaramme a noção do tempo. Onde estará minha pobre companheira? Chorando
junto às cinzas do meu corpo, ou nalgum recanto escuro das regiões da
morte? Oh! minha dor é muito amarga! Que terrível destino o do homem
penhorado no devotamento à família! Creio que raras criaturas terão
padecido tanto quanto eu!... No planeta, vicissitudes, desenganos, doenças,
incompreensões e amarguras, abafando escassas notas de alegria; depois,
os sofrimentos da morte do corpo... Em seguida, martirizações no alémtúmulo! Que será, então, a vida? Sucessivo desenrolar de misérias e
lágrimas? Não haverá recurso à semeadura da paz? Por mais que deseje
firmar-me no otimismo, sinto que a noção de infelicidade me bloqueia o
espírito, como terrível cárcere do coração. Que desventurado destino,
generoso benfeitor!.
Chegado a essa altura, o vendaval da queixa me conduzira o barco
mental ao oceano largo das lágrimas.
Clarêncio, contudo, levantou-se sereno e falou sem afetação:
- Meu amigo, deseja você, de fato, a cura espiritual?
Ao meu gesto afirmativo, continuou:
- Aprenda, então, a não falar excessivamente de si mesmo, nem
comente a própria dor. Lamentação denota enfermidade mental e
enfermidade de curso laborioso e tratamento difícil. É indispensável criar
pensamentos novos e disciplinar os lábios. Somente conseguiremos
equilíbrio, abrindo o coração ao Sol da Divindade. Classificar o esforço
necessário de imposição esmagadora, enxergar padecimentos onde há luta
edificante, sói identificar indesejável cegueira dalma. Quanto mais utilize o
verbo por dilatar considerações dolorosas, no círculo da personalidade,
mais duros se tornarão os laços que o prendem a lembranças mesquinhas.
O mesmo Pai que vela por sua pessoa, oferecendo-lhe teto generoso, nesta
casa, atenderá aos seus parentes terrestres. Devemos ter nosso
agrupamento familiar como sagrada construção, mas sem esquecer que
nossas famílias são seções da Família universal, sob a Direção Divina.
Estaremos a seu lado para resolver dificuldades presentes e estruturar
projetos de futuro, mas não dispomos do tempo para voltar a zonas estéreis
de lamentação. Além disso, temos, nesta colônia, o compromisso de aceitar
o trabalho mais áspero como bênção de realização, considerando que a
Providência desborda amor, enquanto nós vivemos onerados de dívidas. Se
deseja permanecer nesta casa de assistência, aprenda a pensar com justeza.
Nesse ínterim, secara-se-me o pranto e, chamado a brios pelo
generoso instrutor, assumi diversa atitude, embora envergonhado da minha
fraqueza.
- Não disputava você, na carne - prosseguiu Clarêncio, bondoso -, as
vantagens naturais, decorrentes das boas situações? Não estimava a
obtenção de recursos lícitos, ansioso de estender benefícios aos entes
amados? Não se interessava pelas remunerações justas, pelas expressões
de conforto, com possibilidades de atender à família? Aqui, o programa não
é diferente. Apenas divergem os detalhes. Nos círculos carnais, a convenção e a garantia
monetária; aqui, o trabalho e as aquisições definitivas do espírito imortal.
Dor, para nós, significa possibilidade de enriquecer a alma; a luta constitui
caminho para a divina realização. Compreendeu a diferença? As almas
débeis, ante o serviço, deitam-se para se queixarem aos que passam; as
fortes, porém, recebem o serviço como patrimônio sagrado, na
movimentação do qual se preparam, a caminho da perfeição. Ninguém lhe
condena a saudade justa, nem pretende estancar sua fonte de sentimentos
sublimes. Acresce notar, todavia, que o pranto da desesperação não edifica
o bem. Se ama, em verdade, a família terrena, é preciso bom ânimo para lhe
ser útil.
Fez-se longa pausa. A palavra de Clarêncio levantara-me para
elucubrações mais sadias.
Enquanto meditava a sabedoria da valiosa advertência, meu benfeitor,
qual o pai que esquece a leviandade dos filhos para recomeçar serenamente
a lição, tornou a perguntar com um belo sorriso:
- Então, como passa? Melhor?
Contente por me sentir desculpado, à maneira da criança que deseja
aprender, respondi, confortado:
- Vou bem melhor, para melhor compreender a Vontade Divina.
EXPLICAÇÕES DE LÍSIAS
Repetiram-se as visitas periódicas de Clarêncio e a atenção diária de
Lísias.
À medida que procurava habituar-me aos deveres novos, sensações
de desafogo me aliviavam o coração. Diminuíram as dores e os
impedimentos de locomoção fácil. Notava, porém, que, a recordações mais
fortes dos fenômenos físicos, me voltavam a angústia, o receio do
desconhecido, a mágoa da inadaptação. Apesar de tudo, encontrava mais
segurança dentro de mim.
Deleitava-me, agora, contemplando os horizontes vastos, debruçado
às janelas espaçosas. Impressionavam-me, sobretudo, os aspectos da
Natureza. Quase tudo, melhorada cópia da Terra. Cores mais harmônicas,
substâncias mais delicadas. Forrava-se o solo de vegetação. Grandes
árvores, pomares fartos e jardins deliciosos. Desenhavam-se montes
coroados de luz, em continuidade à planície onde a colônia repousava.
Todos os departamentos apareciam cultivados com esmero. A pequena
distância, alteavam-se graciosos edifícios. Alinhavam-se a espaços
regulares, exibindo formas diversas. Nenhum sem flores à entrada,
destacando-se algumas casinhas
encantadoras, cercadas por muros de hera, onde rosas diferentes
desabrochavam, aqui e ali, adornando o verde de cambiantes variados. Aves
de plumagens policromas cruzavam os ares e, de quando em quando,
pousavam agrupadas nas torres muito alvas, a se erguerem retilíneas,
lembrando lírios gigantescos, rumo ao céu.
Das janelas largas, observava, curioso, o movimento do parque.
Extremamente surpreendido, identificava animais domésticos, entre as
árvores frondosas, enfileiradas ao fundo.
Nas minhas lutas introspectivas, perdia-me em indagações de toda
sorte. Não conseguia atinar com a multiplicidade de formas análogas às do
planeta, considerando a circunstância de me encontrar numa esfera
propriamente espiritual.
Lísias, o companheiro amável de todos os dias, não regateava
explicações.
A morte do corpo não conduz o homem a situações miraculosas, dizia.
Todo processo evolutivo implica gradação. Há regiões múltiplas para os
desencarnados, como existem planos inúmeros e surpreendentes para as
criaturas envolvidas de carne terrestre. Almas e sentimentos, formas e
coisas, obedecem a princípios de desenvolvimento natural e hierarquia
justa.
Preocupava-me, todavia, permanecer ali, num parque de saúde, havia
muitas semanas, sem a visita sequer de um conhecido do mundo. Afinal,
não fora eu a única pessoa do meu círculo a decifrar o enigma da sepultura.
Meus pais me haviam antecipado na grande jornada. Amigos vários, noutro
tempo, me haviam precedido. Por que, então, não apareciam naquele quarto
de enfermidade espiritual, para conforto do meu coração dolorido?
Bastariam alguns momentos de consolação.
Um dia, não pude conter-me e perguntei ao solícito visitador:
- Meu caro Lísias, acha possível, aqui, o encontro com aqueles que
nos antecederam na morte do corpo físico?
- Como não? Pensa que está esquecido?!...
- Sim. Por que não me visitam? Na Terra, sempre contei com a
abnegação maternal. Minha mãe, entretanto, até agora não deu sinal de vida.
Meu pai, igualmente, fez a grande viagem; três anos antes do meu trespasse.
- Pois note - esclareceu Lísias -, sua mãe o tem ajudado dia e noite,
desde a crise que antecipou sua vinda. Quando se acamou para abandonar o
casulo terrestre, duplicou-se o interesse maternal a seu respeito. Talvez não
saiba ainda que sua permanência nas esferas inferiores durou mais de oito
anos consecutivos. Ela jamais desanimou. Intercedeu, muitas vezes, em
"Nosso Lar", a seu favor. Rogou os bons ofícios de Clarêncio, que começou
a visitá-lo freqüentemente, até que o medico da Terra, vaidoso, se afastasse
um tanto, a fim de surgir o filho dos Céus. Compreendeu?
Eu tinha os olhos úmidos. Ignorava o número de anos que me
distanciavam da gleba terrestre. Desejei conhecer os processos de proteção
imperceptível, mas não consegui. Minhas cordas vocais estavam
entorpecidas, com o nó de lágrimas represadas no coração.
- No dia em que você orou com tanta alma - prosseguiu o enfermeiro
visitador -, quando compreendeu que tudo no Universo pertence ao Pai
Sublime, seu pranto era diferente. Não sabe que há chuvas que destroem e
chuvas que criam? Lágrimas há também, assim. É lógico que o Senhor não
espera por nossas rogativas para nos amar; no entanto, é indispensável nos
colocarmos
em determinada posição receptiva, a fim de compreender-lhe a infinita
bondade. Um espelho enfuscado não reflete a luz. Desse modo, o Pai não
precisa de nossas penitências, mas convenhamos que as penitências
prestam ótimos serviços a nós mesmos. Entendeu? Clarêncio não teve
dificuldade em localizá-lo, atendendo aos apelos de sua carinhosa genitora
da Terra; você, porém, demorou muito a encontrar Clarêncio. E quando sua
mãezinha soube que o filho havia rasgado os véus escuros com o auxílio da
oração, chorou de alegria, segundo me contaram...
- E onde está minha mãe? - exclamei, por fim. Se me é permitido,
quero vê-la, abraçá-la, ajoelhar-me a seus pés!
- Não vive em "Nosso Lar" - esclareceu Lísias -, habita esferas mais
altas, onde trabalha não somente por você.
Observando meu desapontamento, acrescentou, fraterno:
- Virá vê-lo, por certo, antes mesmo do que pensamos. Quando
alguém deseja algo ardentemente, já se encontra a caminho da realização.
Tem você, nesse particular, a lição do próprio caso. Anos a fio rolou, como
pluma, albergando o medo, as tristezas e desilusões; mas, quando
mentalizou firmemente a necessidade de receber o auxílio divino, dilatou o
padrão vibratório da mente e alcançou visão e socorro.
Olhos brilhantes, encorajado pelo esclarecimento recebido, exclamei,
resoluto:
- Desejarei, então, com todas as minhas forças... ela virá. . . ela virá...
Lísias sorriu com inteligência, e, como quem previne, generoso,
afirmou ao despedir-se:
- Convém não esquecer, contudo, que a realização nobre exige três
requisitos fundamentais, a saber: primeiro, desejar; segundo, saber desejar;
e, terceiro, merecer, ou, por outros termos, vontade ativa, trabalho
persistente e merecimento justo.
O visitador ganhou a porta de saída, sorridente, enquanto eu me
detinha silencioso, a meditar no extenso programa formulado em tão poucas
palavras.
ORGANIZAÇÃO DE SERVIÇOS
Decorridas algumas semanas de tratamento ativo, saí, pela primeira
vez, em companhia de Lísias.
Impressionou-me o espetáculo das ruas. Vastas avenidas, enfeitadas
de árvores frondosas. Ar puro, atmosfera de profunda tranqüilidade
espiritual. Não havia, porém, qualquer sinal de inércia ou de ociosidade,
porque as vias públicas estavam repletas. Entidades numerosas iam e
vinham. Algumas pareciam situar a mente em lugares distantes, mas outras
me dirigiam olhares acolhedores. Incumbia-se o companheiro de orientar-me
em face das surpresas que surgiam ininterruptas. Percebendo-me as íntimas
conjeturas, esclareceu solícito:
- Estamos no local do Ministério do Auxílio. Tudo o que vemos,
edifícios, casas residenciais, representa instituições e abrigos adequados à
tarefa de nossa jurisdição. Orientadores, operários e outros serviçais da
missão residem aqui. Nesta zona, atende-se a doentes, ouvem-se rogativas,
selecionam-se preces, preparam-se reencarnações terrenas, organizam-se
turmas de socorro aos habitantes do Umbral, ou aos que choram na Terra,
estudam-se soluções para todos os processos que se prendem ao sofrimento.
- Há, então, em "Nosso Lar", um Ministério do Auxílio? - perguntei.
- Como não? Nossos serviços são distribuídos numa organização que
se aperfeiçoa dia a dia, sob a orientação dos que nos presidem os destinos.
Fixando em mim os olhos lúcidos, prosseguiu:
- Não tem visto, nos atos da prece, nosso Governador Espiritual
cercado de setenta e dois colaboradores? Pois são os Ministros de "Nosso
Lar". A colônia, que é essencialmente de trabalho e realização, divide-se em
seis Ministérios, orientados, cada qual, por doze Ministros. Temos os
Ministérios da Regeneração, do Auxílio, da Comunicação, do
Esclarecimento, da Elevação e da União Divina. Os quatro primeiros nos
aproximam das esferas terrestres, os dois últimos nos ligam ao plano
superior, visto que a nossa cidade espiritual é zona de transição. Os
serviços mais grosseiros localizam-se no Ministério da Regeneração, os
mais sublimes no da União Divina. Clarêncio, o nosso chefe amigo, é um dos
Ministros do Auxílio.
Valendo-me da pausa natural, exclamei, comovido:
- Oh! nunca imaginei a possibilidade de organizações tão completas,
depois da morte do corpo físico!...
- Sim - esclareceu Lísias -, o véu da ilusão é muito denso nos círculos
carnais. O homem vulgar ignora que toda manifestação de ordem, no
mundo, procede do plano superior. A natureza agreste transforma-se em
jardim, quando orientada pela mente do homem, e o pensamento humano,
selvagem na criatura primitiva, transforma-se em potencial criador, quando
inspirado pelas mentes que funcionam nas esferas mais altas. Nenhuma organização útil se materializa na crosta terrena, sem que seus raios
iniciais partam de cima.
- Mas "Nosso Lar" terá igualmente uma história, como as grandes
cidades planetárias?
- Sem dúvida. Os planos vizinhos da esfera terráquea possuem,
igualmente, natureza específica. "Nosso Lar" é antiga fundação de
portugueses distintos, desencarnados no Brasil, no século XVI. A princípio,
enorme e exaustiva foi a luta, segundo consta em nossos arquivos no
Ministério do Esclarecimento. Há substâncias ásperas nas zonas invisíveis à
Terra, tal como nas regiões que se caracterizam pela matéria grosseira. Aqui
também existem enormes extensões de potencial inferior, como há, no
planeta, grandes tratos de natureza rude e incivilizada. Os trabalhos
primordiais foram desanimadores, mesmo para os espíritos fortes. Onde se
congregam hoje vibrações delicadas e nobres, edifícios de fino lavor,
misturavam-se as notas primitivas dos silvícolas do pais e as construções
infantis de suas mentes rudimentares. Os fundadores não desanimaram,
porém. Prosseguiram na obra, copiando o esforço dos europeus que
chegavam à esfera material, apenas com a diferença de que, por lá, se
empregava a violência, a guerra, a escravidão, e, aqui, o serviço
perseverante, a solidariedade fraterna, o amor espiritual.
A essa altura, atingíramos uma praça de maravilhosos contornos,
ostentando extensos jardins. No centro da praça, erguia-se um palácio de
magnificente beleza, encabeçado de torres soberanas, que se perdiam no
céu.
- Os fundadores da colônia começaram o esforço, partindo daqui,
onde se localiza a Governadoria - disse o visitador.
Apontando o palácio, continuou:
- Temos, nesta praça, o ponto de convergência dos seis ministérios a
que me referi. Todos começam da Governadoria, estendendo-se em forma
triangular.
E, respeitoso, comentou:
- Ali vive o nosso abnegado orientador. Nos trabalhos administrativos,
utiliza ele a colaboração de três mil funcionários; entretanto, é ele o
trabalhador mais infatigável e mais fiel que todos nós reunidos. Os Ministros
costumam excursionar noutras esferas, renovando energias e valorizando
conhecimentos; nós outros gozamos entretenimentos habituais, mas o
Governador nunca dispõe de tempo para isso. Faz questão que
descansemos, obriga-nos a férias periódicas, ao passo que, ele mesmo,
quase nunca repousa, mesmo no que concerne às horas de sono. Pareceme que a glória dele é o serviço perene. Basta lembrar que estou aqui há
quarenta anos e, com exceção das assembléias referentes às preces
coletivas, raramente o tenho visto em festividades públicas. Seu
pensamento, porém, abrange todos os círculos de serviço, sua assistência
carinhosa a tudo e a todos atinge.
Depois de longa pausa, o enfermeiro amigo acentuou:
- Não faz muito, comemorou-se o 114º aniversário da sua magnânima
direção.
Calara-se Lísias, evidenciando comovida reverência, enquanto eu a
seu lado contemplava, respeitoso e embevecido, as torres maravilhosas que
pareciam cindir o firmamento...
PROBLEMA DE ALIMENTAÇÃO
Enlevado na visão dos jardins prodigiosos, pedi ao dedicado
enfermeiro para descansar alguns minutos num banco próximo. Lísias anuiu
de bom grado.
Agradável sensação de paz me felicitava o espírito. Caprichosos
repuxos de água colorida ziguezagueavam no ar, formando figuras
encantadoras.
- Quem observa esta colmeia imensa de serviço - ponderei - é induzido
a examinar numerosos problemas. E o abastecimento? Não tenho notícia de
um Ministério da Economia...
- Antigamente - explicou o paciente interlocutor - os serviços dessa
natureza assumiam feição mais destacada. Deliberou, porém, o atual
Governador atenuar todas as expressões de vida que nos recordassem os
fenômenos puramente materiais. As atividades de abastecimento ficaram,
assim, reduzidas a simples serviço de distribuição, sob o controle direto da
Governadoria. Aliás, a providência constitui medida das mais benéficas.
Rezam os anais que a colônia, há um século, lutava com extremas
dificuldades para adaptar os habitantes às leis da simplicidade. Muitos
recém-chegados ao "Nosso
Lar" duplicavam exigências. Queriam mesas lautas, bebidas excitantes,
dilatando velhos vícios terrenos. Apenas o Ministério da União Divina ficou
imune de tais abusos, pelas características que lhe são próprias; no entanto,
os demais viviam sobrecarregados de angustiosos problemas dessa ordem.
O Governador atual, todavia, não poupou esforços. Tão logo assumiu
obrigações administrativas, adotou providências justas. Antigos
missionários, daqui, puseram-me ao corrente de curiosos acontecimentos.
Disseram-me que, a pedido da Governadoria, vieram duzentos instrutores de
uma esfera muito elevada, a fim de espalharem novos conhecimentos,
relativos à ciência da respiração e da absorção de princípios vitais da
atmosfera. Realizaram-se assembléias numerosas. Alguns colaboradores
técnicos de "Nosso Lar" manifestavam-se contrários, alegando que a cidade
é de transição e que não seria justo, nem possível, desambientar
imediatamente os homens desencarnados, mediante exigências desse teor,
sem grave perigo para suas organizações espirituais. O Governador,
contudo, não desanimou. Prosseguiram as reuniões, providências e
atividades, durante trinta anos consecutivos. Algumas entidades eminentes
chegaram a formular protestos de caráter público, reclamando. Por mais de
dez vezes, o Ministério do Auxílio esteve superlotado de enfermos, onde se
confessavam vítimas do novo sistema de alimentação deficiente. Nesses
períodos, os opositores da redução multiplicavam acusações. O
Governador, porém, jamais castigou alguém. Convocava os adversários da
medida a palácio e expunha-lhes, paternalmente, os projetos e finalidades
do regime; destacava a superioridade dos métodos de espiritualização,
facilitava aos mais rebeldes inimigos do novo processo variadas excursões
de estudo, em planos mais elevados que o nosso, ganhando, assim, maior
número de adeptos.
Ante pausa mais longa, reclamei, interessado:
- Continue, por favor, meu caro Lísias. Como terminou a luta
edificante?
- Depois de vinte e um anos de perseverantes demonstrações, por
parte da Governadoria, aderiu o Ministério da Elevação, passando a
abastecer-se apenas do indispensável. O mesmo não aconteceu com o
Ministério do Esclarecimento, que demorou muito a assumir compromisso,
em vista dos numerosos espíritos dedicados às ciências matemáticas, que
ali trabalham. Eram eles os mais teimosos adversários. Mecanizados nos
processos de proteínas e carboidratos, imprescindíveis aos veículos físicos,
não cediam terreno nas concepções correspondentes daqui. Semanalmente,
enviavam ao Governador longas observações e advertências, repletas de
análises e numerações, atingindo, por vezes, a imprudência. O velho
governante, contudo, nunca agiu por si só. Requisitou assistência de nobres
mentores, que nos orientam através do Ministério da União Divina, e jamais
deixou o menor boletim de esclarecimento sem exame minucioso. Enquanto
argumentavam os cientistas e a Governadoria contemporizava, formaram-se
perigosos distúrbios no antigo Departamento de Regeneração, hoje
transformado em Ministério. Encorajados pela rebeldia dos cooperadores do
Esclarecimento, os espíritos menos elevados que ali se recolhiam
entregaram-se a condenáveis manifestações. Tudo isso provocou enormes
cisões nos órgãos coletivos de "Nosso Lar", dando ensejo a perigoso
assalto das multidões obscuras do Umbral, que tentaram invadir a cidade,
aproveitando brechas nos serviços de Regeneração, onde grande número de
colaboradores entretinha certo intercâmbio clandestino, em virtude dos
vícios de alimentação. Dado o alarme, o Governador não se perturbou.
Terríveis ameaças pairavam sobre todos. Ele, porém, solicitou audiência ao
Ministério
da União Divina e, depois de ouvir o nosso mais alto Conselho, mandou
fechar provisoriamente o Ministério da Comunicação, determinou
funcionassem todos os calabouços da Regeneração, para isolamento dos
recalcitrantes, advertiu o Ministério do Esclarecimento, cujas impertinências
suportou mais de trinta anos consecutivos, proibiu temporariamente os
auxílios às regiões inferiores, e, pela primeira vez na sua administração,
mandou ligar as baterias elétricas das muralhas da cidade, para emissão de
dardos magnéticos a serviço da defesa comum. Não houve combate, nem
ofensiva da colônia, mas resistência resoluta. Por mais de seis meses, os
serviços de alimentação, em "Nosso Lar", foram reduzidos à inalação de
princípios vitais da atmosfera, através da respiração, e água misturada a
elementos solares, elétricos e magnéticos. A colônia ficou, então, sabendo o
que vem a ser a indignação do espírito manso e justo. Findo o período mais
agudo, a Governadoria estava vitoriosa. O próprio Ministério do
Esclarecimento reconheceu o erro e cooperou nos trabalhos de
reajustamento. Houve, nesse comenos, regozijo público e dizem que, em
meio da alegria geral, o Governador chorou sensibilizado, declarando que a
compreensão geral constituía o verdadeiro prêmio ao seu coração. A cidade
voltou ao movimento normal. O antigo Departamento da Regeneração foi
convertido em Ministério. Desde então, só existe maior suprimento de
substâncias alimentícias que lembram a Terra, nos Ministérios da
Regeneração e do Auxílio, onde há sempre grande número de necessitados.
Nos demais há somente o indispensável, isto é, todo o serviço de
alimentação obedece a inexcedível sobriedade. Presentemente, todos
reconhecem que a suposta impertinência do Governador representou
medida de elevado alcance para nossa libertação espiritual. Reduziu-se a
expressão física e surgiu maravilhoso coeficiente de espiritualidade.
Lísias silenciou e eu me entreguei a profundos pensamentos sobre a
grande lição.
NO BOSQUE DAS ÁGUAS
Dado o meu interesse crescente pelos processos de alimentação,
Lísias convidou:
- Vamos ao grande reservatório da colônia. Lá observará coisas
interessantes. Verá que a água é quase tudo em nossa estância de
transição.
Curiosíssimo, acompanhei o enfermeiro sem vacilar.
Chegados a extenso ângulo da praça, o generoso amigo acrescentou:
- Esperemos o aeróbus. (1)
Mal me refazia da surpresa, quando surgiu grande carro, suspenso do
solo a uma altura de cinco metros mais ou menos e repleto de passageiros.
Ao descer até nós, à maneira de um elevador terrestre, examinei-o com
atenção. Não era máquina conhecida na Terra. Constituída de material muito
flexível, tinha enorme comprimento, parecendo ligada a fios invisíveis, em
virtude do grande número de antenas na tolda. Mais tarde, con-
__________
(1) Carro aéreo, que seria na Terra um grande funicular.
firmei minhas suposições, visitando as grandes oficinas do Serviço de
Trânsito e Transporte.
Lísias não me deu tempo a indagações. Aboletados convenientemente
no recinto confortável, seguimos Silenciosos. Experimentava a timidez
natural do homem desambientado, entre desconhecidos. A velocidade era
tanta que não permitia fixar os detalhes das construções escalonadas no
extenso percurso. A distância não era pequena, porque só depois de
quarenta minutos, incluindo ligeiras paradas de três em três quilômetros, me
convidou Lísias a descer, sorridente e calmo.
Deslumbrou-me o panorama de belezas sublimes. O bosque, em
floração maravilhosa, embalsamava o vento fresco de inebriante perfume.
Tudo em prodígio de cores e luzes cariciosas. Entre margens bordadas de
grama viçosa, toda esmaltada de azulíneas flores, deslizava um rio de
grandes proporções. A corrente rolava tranqüila, mas tão cristalina que
parecia tonalizada em matiz celeste, em vista dos reflexos do firmamento.
Estradas largas cortavam a verdura da paisagem. Plantadas a espaços
regulares, árvores frondosas ofereciam sombra amiga, à maneira de pousos
deliciosos, na claridade do Sol confortador. Bancos de caprichosos
formatos convidavam ao descanso.
Notando o meu deslumbramento, Lísias explicou:
- Estamos no Bosque das Águas. Temos aqui uma das mais belas
regiões de "Nosso Lar". Trata-se de um dos locais prediletos para as
excursões dos amantes, que aqui vêm tecer as mais lindas promessas de
amor e fidelidade, para as experiências da Terra.
A observação ensejava considerações muito interessantes, mas Lísias
não me deu azo a perguntas nesse particular. Indicando um edifício de
enormes proporções, esclareceu:
- Ali é o grande reservatório da colônia. Todo o volume do Rio Azul,
que temos à vista, é absorvido em caixas imensas de distribuição. As águas
que servem a todas as atividades da colônia partem daqui. Em seguida,
reúnem-se novamente, abaixo dos serviços da Regeneração, e voltam a
constituir o rio, que prossegue o curso normal, rumo ao grande oceano de
substâncias invisíveis para a Terra.
Percebendo-me a indagação íntima, acrescentou:
- Com efeito, a água aqui tem outra densidade. Muito mais tênue, pura,
quase fluídica.
Notando as magníficas construções que me fronteavam, interroguei:
- A que Ministério está afeto o serviço de distribuição?
- Imagine - elucidou Lísias - que este é um dos raros serviços
materiais do Ministério da União Divina!
- Que diz? - perguntei, ignorando como conciliar uma e outra coisa.
O visitador sorriu e obtemperou prazenteiro:
- Na Terra quase ninguém cogita seriamente de conhecer a
importância da água. Em "Nosso Lar", contudo, outros são os
conhecimentos. Nos círculos religiosos do planeta, ensinam que o Senhor
criou as águas. Ora, é lógico que todo serviço criado precisa de energias e
braços para ser convenientemente mantido. Nesta cidade espiritual,
aprendemos a agradecer ao Pai e aos seus divinos colaboradores
semelhante dádiva. Conhecendo-a mais intimamente, sabemos que a água é
veículo dos mais poderosos para os fluidos de qualquer natureza. Aqui, ela é
empregada sobretudo como alimento e remédio. Há repartições no
Ministério do Auxílio absolutamente consagradas à manipulação de água
pura, com certos princípios suscetíveis de serem captados na
luz do Sol e no magnetismo espiritual. Na maioria das regiões da extensa
colônia, o sistema de alimentação tem aí suas bases. Acontece, porém, que
só os Ministros da União Divina são detentores do maior padrão de
Espiritualidade Superior, entre nós, cabendo-lhes a magnetização geral das
águas do Rio Azul, a fim de que sirvam a todos os habitantes de "Nosso
Lar", com a pureza imprescindível. Fazem eles o serviço inicial de limpeza e
os institutos realizam trabalhos específicos, no suprimento de substâncias
alimentares e curativas. Quando os diversos fios da corrente se reúnem de
novo, no ponto longínquo, oposto a este bosque, ausenta-se o rio de nossa
zona, conduzindo em seu seio nossas qualidades espirituais.
Eu estava embevecido com as explicações.
- No planeta - objetei -, jamais recebi elucidações desta natureza.
- O homem é desatento, há muitos séculos - tornou Lísias -; o mar
equilibra-lhe a moradia planetária, o elemento aquoso fornece-lhe o corpo
físico, a chuva dá-lhe o pão, o rio organiza-lhe a cidade, a presença da água
oferece-lhe a bênção do lar e do serviço; entretanto, ele sempre se julga o
absoluto dominador do mundo, esquecendo que é filho do Altíssimo, antes
de qualquer consideração. Virá tempo, contudo, em que copiará nossos
serviços, encarecendo a importância dessa dádiva do Senhor.
Compreenderá, então, que a água, como fluido criador, absorve, em cada lar,
as características mentais de seus moradores. A água, no mundo, meu
amigo, não somente carreia os resíduos dos corpos, mas também as
expressões de nossa vida mental. Será nociva nas mãos perversas, útil nas
mãos generosas e, quando em movimento, sua corrente não só espalhará
bênção de vida, mas constituirá igualmente um veículo da Providência
Divina, absorvendo amarguras, ódios e ansiedades dos
homens, lavando-lhes a casa material e purificando-lhes a atmosfera íntima.
Calou-se o interlocutor em atitude reverente, enquanto meus olhos
fixavam a corrente tranqüila a despertar-me sublimes pensamentos.
NOTÍCIAS DO PLANO
Desejaria meu generoso companheiro facultar-me observações
diferentes, nos diversos bairros da colônia, mas obrigações imperiosas
chamavam-no ao posto.
- Terá você ocasião de conhecer as diversas regiões dos nossos
serviços - exclamou bondosamente -' pois, conforme vê, os Ministérios do
"Nosso Lar" são enormes células de trabalho ativo. Nem mesmo alguns dias
de estudo oferecem ensejo à visão detalhada de um só deles. Não lhe faltará
oportunidade, porém. Ainda que me não seja possível acompanhá-lo,
Clarêncio tem poderes para obter-lhe ingresso fácil em qualquer
dependência.
Voltamos ao ponto de passagem do aeróbus, que não se fez esperar.
Agora, sentia-me quase à vontade. A presença de muitos passageiros
não me constrangia. A experiência anterior fizera-me benefícios enormes.
Esfervilhava-me o cérebro de úteis indagações. Interessado em resolvê-las,
aproveitei o minuto para valer-me do companheiro, quando possível.
- Lísias, amigo - perguntei -, poderá informar-me se todas as colônias
espirituais são idênticas a esta? Os mesmos processos, as mesmas
características?
- De modo algum. Se nas esferas materiais, cada região e cada
estabelecimento revelam traços peculiares, imagine a multiplicidade de
condições em nossos planos. Aqui, tal como na Terra, as criaturas se
identificam pelas fontes comuns de origem e pela grandeza dos fins que
devem atingir; mas importa considerar que cada colônia, como cada
entidade, permanece em degraus diferentes na grande ascensão. Todas as
experiências de grupo diversificam-se entre si e "Nosso Lar" constitui uma
experiência coletiva dessa natureza. Segundo nossos arquivos, muitas
vezes os que nos antecederam buscaram inspiração nos trabalhos de
abnegados trabalhadores de outras esferas; em compensação, outros
agrupamentos buscam o nosso concurso para outras colônias em formação.
Cada organização, todavia, apresenta particularidades essenciais.
Observando que o intervalo se fazia mais longo, interroguei:
- Partiu daqui a interessante formação de Ministérios?
- Sim, os missionários da criação de "Nosso Lar" visitaram os
serviços de "Alvorada Nova", uma das colônias espirituais mais importantes
que nos circunvizinham e ali encontraram a divisão por departamentos.
Adotaram o processo, mas substituíram a palavra departamento por
Ministério, com exceção dos serviços regeneradores, que, somente com o
Governador atual, conseguiram elevação. Assim procederam, considerando
que a organização em Ministérios é mais expressiva, como definição de
espiritualidade.
- Muito bem! - acrescentei.
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